sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O ?im do mundo

Hoje acordei e o cheiro a fumo que me invadia a casa, desencadeou uma série de reacções químicas no interior do globo que comanda. Estagnei sentado, por breves segundos, na beira da minha cama. Levantei-me e, perante todos os presságios e teorias esculpidas a partir do mesmo bloco fundamentalista que já matou,  tomei com regozijo o meu último pequeno-almoço. “Goza-o bem!” Diziam os abutres que trespassam paredes. “Vão-se foder!” Disse eu. E quase me engasgava no meu próprio desdém.
Enchi a taça de água, para facilitar a lavagem. Sim, porque mais tarde, talvez até amanhã, vou lavá-la. Sim, porque o amanhã não tarda, e traz com ele a arca recheada do que já chega tarde, mas não é tarde. “Vamos lá então ver de que é feito o apocalipse” – e com esta ideia às cavalitas, dirigi-me à varanda, onde os homens das obras queimavam folhas de jornal. Queimavam as folhas da seringa que injecta o elixir das almas penadas, nas almas depenadas. “Foda-se, estou atrasado!”   

quarta-feira, 16 de março de 2011

Grandiosidade

Batendo pesadamente as asas, arrastou o imenso corpo escamoso num movimento ascendente, desafiando a gravidade como sempre a sua fisionomia lho havia permitido. Planou através do ar gélido e cinzento rumo ao nada, sem qualquer plano ou necessidade por satisfazer, a tranquilidade da altitude e o vento que silvava cortado pelas afiadas extremidades da sua pesada mas nobre existência, ofereciam-lhe todo o conforto e paz de espírito que necessitava. Uns metros mais acima, o cinzento tornava-se agora azul, cores que separadas por uma definida linha de horizonte, pareciam estabelecer fronteira entre 2 mundos completamente distintos. O imponente globo estelar aquecia agora a sua espessa pele verde-acinzentada, à medida que com suaves pinceladas pintava de dourados, laranjas e amarelos, o denso manto de algodão que ilusoriamente se deslocava à sua passagem. Precisava agora de respirar fundo em terra firme e algum tempo passado, as asas são bruscamente recolhidas fazendo cair a pique o enorme animal que furava veemente através da imensa e branca muralha horizontal. Solo firme aproximava-se a uma velocidade estonteante, ameaçando de morte todo e qualquer outro ser…que não este! A poucos metros de um impossível impacto, a sua total envergadura é revelada perante o tempo que intimidado, parece agora congelar e delicadamente, as mortais garras abraçam o tronco da colossal árvore defunta que vergada perante a sua presença, lhe oferece poiso. Calmo e pensativo, vê agora a sua serenidade importunada por dois pequenos seres de feições rugosas, que vindos do nada gargalham irritantemente, enquanto apontam a ausência de um dos dedos da sua pata esquerda, fruto de uma das muitas guerras e obstáculos, vitoriosamente ultrapassados. A calma é-lhe devolvida, ao aperceber-se do quão facilmente poderia exterminar aquelas duas imprudentes formas de vida, com um simples e quente suspiro mas, nem vontade para tal existe… Recorda-se de tempos passados em que era humano mas desta vez, não sente o mínimo raio de nostalgia ou saudade, sente fome. Orgulhoso, ergue a sua superioridade rumo aos céus em busca de alimento, à medida que os risos se tornam confortavelmente mais distantes.

Por: Tiago Santos

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Massa que amassa

A música de massas,
feita para as massas
e feita de massa doente
que amassa a massa cinzenta,
que entorpece e entope
os carris do bom senso.
A massa que a labreguice amassou,
alimenta e adoece
aqueles a quem a luz não ilumina
porque para eles,
não há nada para iluminar!
Trava-se a batalha entre a canalha
e as malhas do dinheiro salgado
que quem bebe, mais quer beber
e mais quer amassar!
Sujas de massa,
as massas javardam sofregamente
na massa que comem
porque o outro come,
ao som da dança
que o outro dança
e porque o outro dança.
Nas massas, assim funciona:
Rodas dentadas que se movem
Encadeadas num contínuo
movimento centrífugo,
que não geme ao som da vergonha.
Que vergonha!

Por: Tiago Santos

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Boas festas!

As pupilas dilatam em massa quando o frio aperta. Os Barões recostam-se e sorriem, confortados pelas esféricas barrigas dilatadas pelo socialmente correcto, enquanto o fumo dos charutos empesta a selva moral com o pútrido cheiro da hipocrisia: a terrível arromba-mentes!
Lá fora, zombies sorridentes atropelam-se nas ruas iluminadas pela Câmara “Unicipal”: um Hospital de prioridades infectadas por um cancro que gargalha, tal criança que assiste à miséria do palhaço pobre no Indignalli Circus! Entre queixumes, discórdias e etiquetas, a calçada vai escutando os alegres gemidos dos que São Nicolau cegou, com a negra poeira das chaminés da inocência. Embriagado pela beleza sazonal, fundo-me com a multidão e preparo-me para a orgia de sorrisos e abraços que brevemente me espera e a qual aceito, com uma paradoxal vontade genuína de quem desiludido, não quer desiludir! O relógio das tarefas não pára e o ponteiro dos segundos, estimula-me a locomoção num compasso acelerado, orquestrado por um Maestro cuja sanidade ficou algures perdida pelos caminhos da rotina. Ele não escuta, apenas comanda! Louco, alucinado, num frenesim de esbracejares apressados que o despenteiam, em plena harmonia com o olhar esbugalhado e sorriso tresloucado.
Aplausos!

Por: Tiago Santos

terça-feira, 9 de março de 2010

A Viagem

Entre bocejos e correrias, apresso-me para o interior da impaciente lagarta de aço que simplesmente não espera. Sento-me e observo em meu redor os vermes vizinhos, que ora lutam para não adormecer, ora se estudam mútua e subtilmente como se tentassem traçar o perfil psicológico daqueles para quem olham. Uns metros à frente, três mães de filhos ausentes cospem incessavelmente queixas de uma maternidade à qual parecem ter sido forçadas, competindo pela maior fatia de insatisfação, como se de um ritual se tratasse, ironizando assim o incondicionável orgulho que no fundo sentem pelas respectivas crias.
De frente para mim, a tecnologia encarrega-se de estabelecer contacto entre uma virgem larva e um outro ser que apesar de não presente, se torna bastante óbvio. Provavelmente um espécime simétrico do sexo oposto, é o responsável pelo frenesim que os polegares da pequena jovem evidenciam.
Encontro-me num dos poucos sítios que deixa a descoberto ambas as faces de cada pessoa. Máscaras reveladas pelo simples reflexo de uma janela que acolhe olhares indiscretos, rapidamente afuguentados quando cruzados com o nosso, lembrando rãs à tona de um lago, sobressaltadas pela presença de um qualquer predador.
A lagarta parou. Abriu as portas e gemeu. É a minha estação, tenho de sair.


por: Tiago Santos

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Já não há barbeiros...

Já não há barbeiros

Nem cadeiras de barbeiro,

Onde nos possamos sentar

E olhar, o olhar do nosso olhar

Reflectido no espelho

Da cadeira do barbeiro,

Onde rasam tesouras rente às orelhas,

Enquanto nos sentamos

Na cadeira do barbeiro,

E pensamos em tudo e em tudo

Porque temos tempo para pensar

Para reflectir e analisar

Quando estamos sentados

Na cadeira do barbeiro,

Sem outro remédio senão

Fitarmo-nos continuamente

E ver quem fomos, quem somos

E quem viremos a ser

Num mundo onde já não há

Cadeiras de barbeiro.


Por: Tiago Santos

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Breve conto

O gajo não vacilou. Sem a ajuda das mãos, subiu para a proa do barco e fitou a superfície espelhada daquele que seria o mais atraente dos mares onde já havia mergulhado. A sua cor azul-cobalto e a graciosidade da ondulação, sussurravam o seu nome e sorriam-lhe em gestos lentos e subtis, enquanto ele inspirava aquela brisa de um perfume tão perfeito, que sempre lhe fora proibido. O sol de verão acariciava o oceano em reflexos tão fortes, que impediam qualquer tipo de percepção visual abaixo da linha d’água, transformando assim o tão apetecido mergulho, num risco que tanto tinha de perigoso, como de misterioso e, por sua vez irrecusável. Apeteceu-lhe prolongar aquele momento durante duas eternidades, sentiu que o podia saborear por tempo indefinido, sem sentir o mais ínfimo dos enjoos ou a mais pequena das tonturas. Fazia agora 6 anos que ele se tinha apaixonado por todo aquele esplendor, todavia sem o poder tocar ou sequer cheirar, não era a altura e as consequências seriam drásticas, por motivos agora irrelevantes.

Flectiu as pernas e num impulso “catapultónico”, elevou-se durante milésimos de segundos no ar... Conseguiu sentir aquela húmida e amena massa oceânica percorrer todo o seu corpo, desde a ponta dos dedos, até ao último milímetro dos dedos dos pés, fundindo-se assim a um prazer sublime, que superava agora todas as suas expectativas. Era sem qualquer surpresa, melhor do que imaginara, aquela sensação da qual nunca tinha pensado poder vir a desfrutar. Descurou no entanto, a visibilidade que a luz do sol lhe havia negado anteriormente…



Por: Tiago Santos